sábado, 12 de dezembro de 2015

Fetiche da Mercadoria

Texto extraído na íntegra de: SARTRE, Jean Paul. O que é subjetividade? 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 29 - 31 (As notas no final são minhas considerações e/ou apresentações de definições).


(...) a fetichização da mercadoria[1] que faz com que a mercadoria apareça como tendo certas propriedades que ela não tem. Essa fetichização da economia aparece como resultado do processo do capital e, por conseguinte, quando vemos uma mercadoria fetichizada, quando nós mesmos, embora alertados pela teoria marxista, tomamos essa mercadoria que vamos comprar como fetichizada, quando a consideramos um fetiche, limitamo-nos a fazer o que a realidade exige que façamos, pois, em certo nível, ela é objetiva e realmente fetichizada. Nesse momento, como se percebe a realidade subjetiva parece sumir completamente, pois o portador das relações econômicas as realiza como deve realizá-las no nível em que ele se encontra, e a ideia que ele tem delas limita-se a refleti-las no mesmo nível em que se encontra a práxis[2]; ou seja, que o negociante e o comprador nesse nível imediato tomarão essa mercadoria como fetichizada, mesmo que o economista ou o marxista, em outro plano, percebam que essa fetichização é, na realidade, uma transformação decorrente do processo do capital. Por isso alguém como Lukács[3] pode propor uma teoria da consciência de classe inteiramente objetiva, segundo uma dialética objetiva e, se ele parte da subjetividade, será apenas para remetê-la ao sujeito individual, concebido como fonte de erros ou apenas de realização inadequada. Com Lukács, será considerado, sobretudo, que a consciência de classe é mais ou menos desenvolvida, mais ou menos clara, mais ou menos obscura, mais ou menos contraditória, mais ou menos eficaz, apenas pelo fato de a classe considerada pertencer, direta ou indiretamente, ao processo essencial de produção. Por exemplo, no pequeno-burguês, a consciência de classe será objetivamente vaga, obscura e nunca poderá, por razões que Lukács explica, chegar a uma verdadeira consciência de si[4], ao passo que o proletariado, profundamente inserido no processo de produção, pode ser levado pela realidade que é o seu trabalho, uma total tomada de consciência de classe.

Essa concepção ordena o objetivismo a ponto de fazer desaparecer toda subjetividade e, assim, até nos fazer cair em um idealismo, idealismo sem dúvida dialético, idealismo no qual se partirá da condição material, mas, mesmo assim, idealismo[5]. Ora, não é verdade que Marx, ou o marxismo, se prestem a este papel. Há textos cuja ambiguidade decorre de sua profundidade, mas não são textos a serem interpretados como se o pan-objetivismo fosse a finalidade precisa do marxismo. É bastante sensível em textos como a Introdução à crítica da economia política, em que Marx escreve: "Assimo como em toda ciência histórica ou social em geral, nunca se deve esquecer, a propósito do avanço das categorias econômicas, que o sujeito - no caso, a sociedade burguesa moderna - é conhecido, tanto na realidade quanto na mente, que as categorias exprimem, portanto formas de existência, condições de existências determinadas, quase sempre em simples aspectos particulares desta determinada sociedade, desse sujeito, e, por conseguinte, essa sociedade só começa a existir, também do ponto de vista científico, a partir do momento em que ela é tratada como tal"[6]. É claro que "existência" não quer dizer aqui existencialismo ou existência no sentido existencialista[7]. Não se trata de extrair dos textos um sentido que eles não têm, mas isso nos remete ao homem total. Porém, qual é este homem total? Os senhores sabem que nos textos do jovem Marx, assunto que ele retoma depois, o homem total se define por uma dialética de três termos: necessidade, trabalho, prazer. 

Logo, se quisermos compreender, segundo Marx, o conjunto da dialética da produção, é indispensável primeiro voltar ao fundo, e o fundo é o homem que tem necessidades, que procura satisfazê-las, isto é, produzir e reproduzir sua vida pelo trabalho, e que consegue, segundo o processo econômico disso resultante, chegar ao prazer mais ou menos imperfeito, mais ou menos atrofiado, mais ou menos total[8](...)"

[1] Fetichização da mercadoria é o modo que o filósofo Karl Marx denominou o fenômeno social e psicológico onde as mercadorias aparentam ter uma vontade independente de seus produtores. Segundo Marx, o fetichismo é uma relação social entre pessoas midiatizada por coisas. O resultado é a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas. As pessoas agem como coisas e as coisas, como pessoas. Ou seja, o fetiche seria algo "místico" que a mercadoria possui, influenciando gostos, impondo padrões e criando necessidades que antes não tínhamos.

[2] Práxis é a ação concreta em ocorrência. No caso do texto a reflexão acerca do que é a mercadoria e sua importância é determinada pela ação que ela produz em sua relação de compra/troca dentro do sistema que gere o capital, ou seja, o capitalismo. 

[3] György Lukács filósofo húngaro nascido em 1885, influenciado por Kant no início de sua carreira, após encontrar-se com Hegel, tornou-se marxista.

[4] Neste ponto vale lembrar a reflexão que Simone de Beauvoir fez, na qual ela questiona como alguém privilegiado pode pensar sua própria situação? O pequeno-burguês está dentro de uma ideologia na qual ele por ser beneficiado de modo razoável financeiramente falando e ao mesmo tempo não ser parte da grande burguesia não consegue observar as diferenças de classe sem o ponto de vista da ideologia capitalista, a qual a própria Simone aponta a dificuldade em legitimar esta, quando apontando à universalização dela e suas demagogias. 

[5] Note que neste ponto Sartre faz uma crítica ao idealismo marxista.

[6] Note que aqui Marx afirma claramente que não podemos esquecer o avanço que tais categorias, em nosso caso a burguesia moderna, nos proporcionaram. E, que mesmo da óptica científica a sociedade capitalista começa a existir assim que ela é tratada como tal.

[7] Existencialismo ou pensamento existencialista é quando colocamos o indivíduo (ser humano) com suas características que lhe são próprias como parte da especulação filosófica, colocando a pessoa junto com a realidade e suas interpretações dela, a grosso modo.

[8] Nesse ponto ao considerar homem total e versar que mesmo através da relação econômica do trabalho, o homem não consegue chegar ao estágio final de prazer total e tornar-se um homem completo, afinal, a fetichização da mercadoria acaba nos tirando do foco do nosso próprio trabalho juntamente com o processo de alienação. 

2 comentários:

  1. Muito bom o texto. Suas explicações ao final ajudam muito quem está iniciando os estudos. Lembrei de um poema, um dos meus preferidos, do poeta Paulo Franco (da minha cidade), chamado "O banco", que fala sobre o trabalho. Esse é o bom de sermos de áreas diferentes.Recomendarei seu texto a amigos sartreanos.A dialética que marca o proletariado, tornando-o objetivo e fazendo perder a subjetividade, por estar inserido na objetividade, e a classe média (você usou o termo "pequeno-burguês")que se perde na subjetividade, foi muito bem percebida. Se é que o que entendi está certo rsrs Obrigado!

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    1. Muito obrigado pelo comentário, a respeito do termo pequeno-burguês é esta mesma a intenção. Ademais o pequeno-burguês (classe média) é aquela que está entre ser burguês (capitalista), e proletário (trabalhador). O pequeno burguês em sua subjetividade acredita fidedignamente que a ideologia capitalista é a melhor que representa os anseios de um mundo melhor. Por ele ter acesso ao fetiche da mercadoria muito mais facilmente do que a classe proletária ele não consegue entender a diferença de classe. Porém, ele de longe não é um capitalista, detendor de grandes meios de produção que lhe fornecem uma quantidade de mais valia considerável para a lógica capitalista.

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