sábado, 11 de janeiro de 2020

Análise da música "Raciocínio Quebrado" do Parteum



Nesta análise, a música “Raciocínio Quebrado”, do cantor Parteum, tentará ser compreendida sob o olhar das temáticas referentes ao preconceito, à discriminação e à indústria cultural. Além disso, tentar-se-á constatar as referências que o cantor faz a personagens históricos, de revoltas sociais, bem como intelectuais.




É perceptível no ínicio da música, que o eu-lírico fala sobre seus irmãos, as pessoas que estão no mesmo ambiente/situação social que ele, que têm a autoestima baixa. Entretanto, a dele jamais cai, e o motivo disso é o fato de que ele nega a se encaixar no estereótipo (perfil) que a televisão/mídia vende sobre ele no horário nobre. É importante perceber a sequência da música: “É quando a audiência sobe que os bonecos se mexem e o nível desce”. As pessoas, manipuladas, movem-se, ou seja, correspondem e reproduzem o que observam. O nível dos bonecos desce, pois eles não observam por uma óptica crítica o que estão vendo, apenas se mexem, de modo controlado, e seguem os estímulos estereotipados e preconceituosos que a televisão transmite. Quanto mais alguém reproduz sem refletir, mais manipulado se torna. Nesta primeira parte, é impossível não fazer uma associação direta com a tese da Indústria Cultural, conforme se vê na definição de Alda Cristina Silva da Costa, et al, (2003):

A indústria cultural pode ser definida como o conjunto de meios de comunicação como, o cinema, o rádio, a televisão, os jornais e as revistas, que formam um sistema poderoso para gerar lucros e por serem mais acessíveis às massas, exercem um tipo de manipulação e controle social, ou seja, ela não só edifica a mercantilização da cultura, como também é legitimada pela demanda desses produtos. (COSTA, A. C. S. da, et al, 2003).

Em detrimento disso, o eu-lírico aprofunda-se com uma  crítica referente ao fato de ainda reproduzirmos preconceitos da época do Brasil colônia (e em horário nobre da televisão aberta). O verso dele é comparado à amônia, substância que é utilizada em várias situações para neutralizar agentes químicos, indicando que ele seria um combatente de preconceitos. Então, o eu-lírico mostra que está pesquisando cada “estrela” que brilha de outras vilas até a dele e reforça que mesmo que as pessoas sejam diferentes e estejam em outros lugares, ainda estão sob o mesmo céu, e/ou que as coisas boas que elas possuem podem ser assimiladas, que todos estão no mesmo planeta e que devem se ver como irmãos, conforme é dito no início da música.

Então, através de processos de assimilação, que segundo o eu-lírico são retos e progressistas, por meio da conversa, é que a evolução do ser inicia-se, ou seja, através do diálogo. É afirmado que a mão pode estar suja (talvez, por causa do trabalho realizado) como o chão, mas a sua mente está limpa, preparada para novos conhecimentos. Ademais, versa-se que está a ir visitar novos templos, em silêncio, quieto, para poder prestar atenção no que está ocorrendo e sendo dito, para fazer uma análise do que observa e ouve. O eu-lírico vai dar à terra o que é dela, até que o tempo se acabe, isto é, até que ele mesmo deixe de viver e seu corpo seja entregue ao solo.

Invoca-se o nome de Hammurabi, um rei babilônico que criou um conjunto de leis para seus dominados, sendo a mais famosa a Lei de Talião, que afirmava que um crime deveria ser julgado em reciprocidade, onde surgiu a expressão olho por olho, dente por dente, repudiada pelo eu-lírico, que conclui essa perspectiva sendo criadora de um mundo decadente que não vai para lugar nenhum. 

É trazido o nome de Zumbi — o último líder do Quilombo dos Palmares —, o qual queria liberdade de seu povo e junto a ele lutavam para tornar a libertação um fato, com isso percebemos que o eu-lírico induz a uma perspectiva revolucionária para alterar o status quo. 

Nos é apresentado o conceito de autoexplanação, que afirmada pelo cantor ela por si só pode ser falha. Explicar algo por si mesmo não é garantia de compreensão correta de qualquer fenômeno, afinal em muitos casos, pode-se incorrer no que conhecemos como viés de confirmação, que é o ato de apenas visualizar o que parece coincidir com nosso próprio ponto de vista, ou até mesmo permanecermos no senso comum; o eu-lírico afirma que guarda dinheiro para ganhar na loteria, “Nunca se sabe”, diz ele, afinal, se ganhar, pode pôr em prática muito mais facilmente seus ideais nesta sociedade que é dependente do dinheiro. Uma questão válida a se fazer, frente a isso, seria: Mesmo querendo a mudança do status quo, o oprimido ainda não sonha em fazer parte da hegemonia?

É citado pelo eu-lírico que as leituras de livros que ele vem fazendo trazem luz e, então, ele mesmo espalha cada frase delas conforme são compreendidas. Ao ter o conhecimento e observar o mundo, ele faz uma crítica aos reacionários (“tolos”) que promovem a discórdia entre as pessoas, os conservadores que querem manter a história da mesma forma, como a festa do Carmo, que pouco se altera com o passar do tempo, partindo do pressuposto que o conservadorismo é nocivo à qualquer perspectiva de desenvolvimento e evolução de entendimento frente à mudança da realidade social. Tendo em vista, que de acordo com vários pesquisadores em ensino e sociologia, somos sujeitos históricos e a realidade social é transitória, nada é fixo e permanente na tessitura das relações sociais, adotar uma postura conservadora é negar a própria construção da cultura/sociedade.

Do Largo da Concórdia (centro onde há a cultura nordestina em São Paulo) até Jaboatão dos Guararapes, o eu-lírico faz uso de uma caneta para escrever seus pensamentos, apontando (afiando, melhorando) suas rimas com um lápis, o que pode ser entendido como um processo de raciocínio cauteloso e passível de revisão. Relata, também, que não é necessário ataques ocultos (subliminares), iguais às correntes que prendem os escravos de ideologias. Pensando nisso, é necessário objetividade no discurso que nos fará abrir os olhos para as opressões. Na linguagem sauíle — língua de matriz africana —, o eu-lírico diz que é maltratado com chutes apresentados como corteses pelo colonizador, e assim é visto o poder da diáspora (dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica). Ao falar disso, a rima é áspera, difícil, por expressar uma realidade que não o agrada e que mostra que esta função é pragmática, que o que é dito é feito, no caso, os discursos de ódio se manifestam na cultura, na prática do colonizador.

Enfim, chega-se ao “raciocínio quebrado”, já estabelecido através de uma mutação do gênero da música que o eu-lírico faz, o rap, que ocorre como as chuvas de verão que aparecem inesperadamente e não podem ser evitadas. O eu-lírico exerce o poder de dizer, por meio de linhas tortas, como abre portas para que mentes sejam livres como os corpos querem sê-lo; como pode gerar consciência de que o pensamento deve ser independente, para que a vida seja mais do que apenas sofrimento e existência no mundo, para que os oprimidos tomem consciência e procurem deixar de ser reprimidos e passem a ser mais.

Ainda pensando na questão do “raciocínio quebrado”, devemos conhecer o contexto da obra em que foi publicada esta faixa. No CD “Magus Operandi”, publicada quatro anos depois , há uma música intitulada A Moral Provisória e em um trecho da mesma é dito: “(...) E quando eu fiz quinze passei a ser bancário / Já vi dinheiro grande, mais ou menos e trocado / Quem você acha que banca meu raciocínio quebrado?” Poderíamos concluir que o que contribui para a formação do raciocínio quebrado, para o eu-lírico, é a concepção mercantilista da vida?

Há uma contradição que já está impregnada na consciência coletiva que não se deve tentar vencer o status quo e que, para tal, precisa-se de mais alcance e domínio antecipado para quebrar a consciência coletiva produzida pelo opressor, que abusa da solidão humana — criada pelo próprio opressor (colonizador), através do individualismo. Então, aparecem os agrupamentos de talentos com doses terapêuticas de reflexão, na tentativa de mudar a situação. Sendo assim, é necessário que haja a modificação da consciência coletiva que está resignada a aceitar a sociedade como está, então a função aqui seria desnaturalizar a sociedade, fazer o oprimido se reconhecer como tal, adquirindo assim consciência de sua situação, para que ele possa revoltar-se e buscar uma sociedade sem discriminação e sem opressão.

Parteum faz uma menção aos que dizem para ele: “Fábio, não precisa complicar!” (Fábio é a pessoa por trás do Parteum). Aqui, notoriamente, vê-se que essas pessoas discordam que ele utilize suas músicas para fazer críticas sociais fundamentais e filosóficas que necessitam de reflexão mais apurada — isso é observado em outras letras que são dotadas de contextos históricos e filosóficos profundos. como A moral provisória, na qual faz alusão ao filósofo René Descartes, que já foi citada nesta análise. 

Ainda sobre o que dizem para o eu-lírico, alguns veem que a obra do Parteum é uma “cilada”, que ela faz refletir profunda e filosoficamente. Muitos quebram seus raciocínios (abstém-se de pensar criticamente), pois, segundo eles, têm fascínio pelos beats de outros planetas (seria uma maneira de fugir da realidade imediata, ao preocupar-se somente com o que está longe?), além disso, afirmam não querer “problemas que não são deles”. Aqui, percebe-se que os muitos que se voltam e falam isso para Parteum são egocêntricos e não se interessam pelo outro ser social, mas, sim, somente neles próprios, evidenciando a falta de empatia.

A seguir, o eu-lírico afirma que o que muitos dizem para ele é complicado como o Deus que a TV vende — pensando em lucro — ou se refere que a TV (grande mídia) comercializa uma verdade absoluta, um dogma, e reforçando o que é de interesse das classes dominantes, na indústria cultural.

Enquanto a guerra ocorre, sons de violinos podem ser ouvidos, talvez uma tentativa simbólica de por fim nela mesma. Seguindo os últimos versos, os sentidos do eu-lírico são libertos para que ele esteja aberto às revelações da próxima leitura que ele fará.

É possível constatarmos que nas letras de Parteum, especialmente nessa, é carregada de reflexão crítica sobre a realidade social, que mesmo após anos do fim da escravidão, os preconceitos continuam a existir e que apenas estão se modernizando, conforme a sociedade fica mais tecnológica.

REFERÊNCIAS:

COSTA, A. C. S. da; et al. Indústria Cultural: revisando Adorno e Horkheimer. Movendo Idéias, Belém, v8, n.13, p.13-22, jun 2003. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/praxis/467/211.pdf?sequence=1> Acesso em 03 de Setembro de 2019.

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